Margarida Neves (nome completo: Margarida Maria das Neves Estêvão Baía) é portuguesa e nasceu em 1972. Passou parte da sua vida em Espanha, Estados Unidos e Itália. Vive atualmente em Lisboa. Num encontro de poesia organizado pela Casa Fernando Pessoa, em 2019, reatou a vontade de reunir alguns dos poemas que começara a escrever em 2002. Desde então tem escrito regularmente nos tempos livres (poesia, narrativa/contos). Doutorou-se em matemática e é professora universitária.
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PARTO

Parto devagar,
de-va-ga-ri-nho,
em bicos de pés
para que a tristeza
que tem sono ligeiro
não perceba que o faço;
para que o receio
dum lugar desconhecido
não bloqueie meus reflexos
por ora cansados.

Sem discutir: parto!
Nada levo comigo
e nem um livro deixo 
nas tristes prateleiras
– sem molduras
nem registo
de felicidade alguma.

Quando chegares
sentirás no teu corpo inóspito
o calor da lareira acesa;
no silêncio da noite
crepitarão tristezas hirtas.

ONTEM FUI À PRAIA

Ontem fui à praia – o mar acolheu de bom grado o meu corpo.
Estiquei braços e pernas. Flutuei.
Senti os meus cabelos envolverem-se nas algas escuras que a corrente trazia.
Rodopiando no seu próprio eixo, acorrentados pela força de um pequeno remoinho,
fizeram-me sentir mais leve. A alegria do meu corpo… o aroma a sal… tudo me parecia
novidade. 

À noite escrevi como último destino. O que me oprimia – angustiava – o remoinho expurgou como se do desentupimento dum cano se tratasse. A tinta azul da esferográfica fluía e cada frase era a rebentação de uma onda. Cansadas, parámos: a esferográfica e eu. Recordei a luz alaranjada sobre o meu pé direito que na praia me disse: vai para casa. Agora que as tardes se fundem em noites incompletas perco, por vezes, a noção do tempo.

EIS-ME AQUI

Eis-me aqui. Através deste vidro – opaco pelo passar do tempo –
ouço o rumor da primavera ao de leve, bandos de pássaros com fraque preto
e futuras noivas de Santo António em pranto. O tempo passa – vai passando – por entre estes vidros que me asfixiam.

Abro a janela. A bruma revitaliza-me a face. Os pássaros de fraque preto cantam-me em coro – sonatas de Schubert, cantatas de Bach. Ainda bem que já sei distinguir um dó de um ré de um mi de um fá de um sol de um lá de um si; um tom de um semitom. Começo também a cantar.

Estendo as asas: voo. A roupa de casa converte-se num vestido de lantejoulas nacarado, e um corvo convida-me para jantar. Tem bigode e traje apertado. Começa também ele a cantar. Canta-me um fado: o fado da saudade. Que coisa bela!

Bica-me a face. Começo a corar.

CELEBRAÇÃO

O odor a rosmaninho cheira-me a ti.
As memórias não mentem
nem menos mentem
os álbuns de fotografias.
Chegámos juntos ao improvável.
Admirámos juntos a beleza dum amor salutar
na perseverança dos pequenos gestos
que entediaram o próprio tédio.

Hoje, com dor nos ossos
e um bocado de reumático aqui e acolá,
podemos declamar
do amor suas virtudes;
podemos anunciar ao mundo
que o nosso amor – eflúvio de tantas flores –
rejuvenesceu doirado
subcoberto de amizade.

INVERNO (Diuris amarelas)

Na calma dum sonho
os teus olhos cor de mel.
Mantos brancos de seda e nuvens
elevam-te para longe das cinzas-negras que assolam Timor-Leste.
A intensidade de um até breve é finalmente clara.
Certa. Eterna e alegre febre.

No fulgor da luta… esses mesmos olhos.
Foram sempre os teus olhos matizes de memórias.
Resisti ansiando por um reencontro:
plantaríamos diuris amarelas; 
os teus olhos brilhariam
quando, à sua volta,
rodopiassem pequenas abelhas.

Não suporto
canteiros vazios.
Não suporto a ideia de guerra.
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