Intervenção de José António Gomes na cerimónia de entrega do Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres do livro de João Ricardo Lopes “Em Nome da Luz”:
“A poesia de João Ricardo Lopes constrói-se – é o termo correcto – a partir de pequenas fulgurações: momentos particulares, cenários mágicos (Assis, Cremona, Roma, sul de Lanzarote, mas também Esposende, as ondas e um farol, uma sala de aula, a velha escola primária da infância…), passagens de filmes, pinturas e peças musicais (Johann Sebastian Bach, Chopin, Schubert…). Mas principalmente constrói-se a partir daquela vibração quase imperceptível das coisas simples que, amiúde, constitui o cerne do poema e que com as palavras do próprio poema se confunde.
A propósito da dita construção do texto, refiro, por exemplo, um verso que me parece essencial na leitura desta poesia, e que nos fala do «parto rigoroso de um poema novo», acrescentando que «é ele que te aquece – sempre foi», como se pode ler em «Impromptus D. 899/Opus 90, Schubert» (p. 32).
Por outro lado, poder-se-ia ir buscar um termo menos comum aqui usado, serendipismo (no poema que tem esse termo por título) – enquanto faculdade de descobrir coisas agradáveis por acaso, como ensinam os dicionários –, poder-se-ia ir buscar essa palavra, dizia, para caracterizar a poética de João Ricardo Lopes na obra Em Nome da Luz. Trata-se disso mesmo. Muitos dos poemas, em geral relativamente breves, marcados por uma prosódia serena mas de timbre distintivo, (cor)respondem a uma poética do serendipismo. O sujeito caminha, o sujeito viaja, para descobrir um certo esplendor das coisas.
Mas (sem contar com a própria voz poética) passam pessoas, também, nesta escrita, tais como os ciganos – que louvados são por existirem – ou amigos e companheiros doutros tempos, além de figuras humanas queridas, ou ainda de outro tipo de figuras, as quais povoam a pintura (este, aliás, é um livro dum poeta culto, tanto do ponto de vista musical e das artes visuais como do ponto de vista literário). Menciono a pintura, porque «vemos» muitos quadros neste livro, começando por um que funciona quase como paradigma ou, se se preferir, como elemento desencadeador e orientador da leitura: São José Carpinteiro, de Georges de La Tour (v. p. 13).
A mim agrada-me deveras esta poesia serena, rigorosa, buscadora de luz, consciente do ofício do poeta e dialogante com muitas e variadas obras artísticas e literárias, desde logo sinalizadas pelas epígrafes, mas não só (pois até Luiza Neto Jorge e um seu célebre poema são aqui evocados em filigrana no poema «Magnólia» (p. 14), ignoro se consciente ou inconscientemente).
No livro Em Nome da Luz (Elefante Editores, 2022), apraz ainda captar este amor às coisas simples que atrai o leitor poema após poema como se elas estivessem, e efectivamente estão, dotadas de um estranho poder (como se lê no texto de abertura quase surpreendentemente intitulado «Ética», p. 7)). Mesmo quando percebemos que estas coisas simples não são dissociáveis, por exemplo, de grandes obras artísticas ou de lugares emblemáticos. Ecoando Sophia, a veemência dessas coisas é um ponto forte do livro: «a manhã é limpa, silenciosa, veemente» – lê-se no verso de abertura do belo poema «Um grande bem em nós acordou» (p. 16).
Feito de lugares, de tempo e de memória, Em Nome da Luz é, em suma, um belo livro de poesia, caracterizado por um tónus discursivo emanado de uma voz com dicção e acento singulares, dirigindo-se a um tu que é um desdobramento dessa mesma voz. E é belo também pelo rigor e riqueza da linguagem, sendo de realçar certo gosto por vocábulos menos comuns mas certeiramente expressivos. Belo, ainda, pela discreta e serena sageza que dele emana, não imune porém à melancolia, e que atravessa toda a obra. Um livro em que igualmente são de sublinhar a qualidade imagística e, como já foi dito, um sentido forte da construção do poema.
Por tudo isto, e por outros motivos que aqui não cabe, por razões de tempo, desenvolver, Em Nome da Luz (título que ele próprio poderia sumariar a poética do livro, e para o qual somos reenviados pelo último poema) é o digno e merecido vencedor do Prémio de Poesia da Vila de Fânzeres em 2022 (31.ª edição). Uma obra que prestigia esta importante, já antiga e louvável iniciativa de promoção da poesia que devemos à Junta de Freguesia de Fânzeres.”
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Fânzeres, Casa de Montezelo em 11 de Novembro de 2022