“João Fontão” é o nome artístico de João Pereira. Licenciado em Arte e Design, sempre acreditou que a arte era o caminho da sua vida. Para além da ilustração, da pintura e da escultura, envereda também pela arte da literatura, pois é pintar uma tela, trilhar um caminho com o recurso das palavras. Faz uso de narrativas abstratas para transparecer do papel todo o sentimento que só a poesia pode proporcionar, descrevendo temas de solidão, a perda do “eu” lírico e dando ênfase ao Homem Esquizóide do século XXI.
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HADES
Pelo Aqueronte, nadei ou deixei-me ser arrastado
Carcaças velhas e nojentas flutuavam ao meu lado
Dor interminável era encontrada naquele rio
Mas eu não sentia nada, tudo que caía dentro de mim
Crescia vazio
As carcaças e as águas levaram-me ao Cócito
Era um rio onde as pessoas se faziam de vítimas
A água que calcava não fluía de lado nenhum
Vinha dos lamentadores, eescorria das lágrimas
A tristeza era lavada pela água que os fazia miseráveis
A culpa não era deles, mas sabiam que eram responsáveis
Labaredas e chamas intermináveis enchiam a minha visão
Fogo é suposto arder, mas não o fazia, por alguma razão
As almas diziam que o Flagetonte é a maior perdição
Porém, pareciam ir agradáveis
Era vazio, mas este calor enchia-me o coração
A minha viagem tinha de terminar naquele momento
Após o rio de fogo, vem Lete, o rio do Esquecimento
O meu maior medo era cair na negligência
E o barqueiro que por lá passava deu-me a sua advertência
Aclamou que se lá ficasse,permaneceria morto
A maior arma do inferno não é a punição,
Mas o conforto
Apercebi-me que no Hades, a virtude não pode ser encontrada
Se permanecesse no conforto,continuaria a não ser nada
Arrastei o meu corpo fraco e ridículo para fora do rio
Como é que é possível o Inferno ser tão frio
A minha travessia à beira-rio foi puxada pelo meu fascínio
Apesar da dor da Humanidade, queriaver o seu extermínio
À minha frente estava então o rio do Esquecimento
Era naquelas águas que as carcaças perdiam a sua individualidade
As placas que traziam ao peito com o seu nome, eram arrancadas
sem o seu consentimento
À sua frente estava alguém sentado, parecia menor de idade
A criança olha nos olhos do morto, e lê o seu nome pela última vez
Ao meu lado, estava um ser que irradiava felicidade
Perguntou-me como tinha conseguido fugir
Eu respondi-lhe que não tinha falecido, apenas me deixei ir
Ele sabia que lhe mentia, e perguntou se estava preparado para o fim
Eu chorava-lhe na cara, porque éque o mundo me fez assim
Não falhei tanto ao mundo, como o mundo me falhou a mim
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COLINA DA MELANCOLIA-I
Colina da Melancolia
Se pudesse, descia
Se soubesse, a minha vida pararia
O objetivo seria a Subjetividade
Psiconautas do nosso tempo
Psiconautas da verdade
À nossa volta, uma comunidade
Colina da Melancolia
Se pudesse, voltaria
Heróis perdem a oportunidade
A mente está presa e só quer voar
Fazê-lo, mas com os pés no chão
A terra tirou-nos a vontade de criar
Psiconautas da Perdição
Colina da Melancolia
Tirou-me a vontade de sorrir
A vida é apenas uma paragem
Daquilo que está por vir
Suicídio do Mártir
Não o fez para fugir
Morrer é uma forma de evoluir
Ninguém pediu para existir
Colina da Melancolia
Que feição tão fria
O que aconteceu
à minha alegria
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ABSINTO
E o homem que o deixou de consciência augada
É a dor que traz a sede de absinto pela madrugada
E a idade que lhe trouxe uma mão cheia de nada
São consequências de uma alma penada
O tempo nunca irá curar aquilo a que anda a fugir
O álcool que o paralisa nuncalhe vai trazer prazer
E a solidão é todo o toque que lhe irão permitir
E as crianças nascem para que possam morrer
Quando a juventude da flor ainda perdurava
Tão fácil era a vida e mesmo assim se deixou passar
Tanto tempo para viver, masmesmo assim ignorava
O peso da dor que, às costas, andava a carregar
Inutilidade é apenas um ponto de vista
E as palavras trazem o gosto pela fraqueza
E esta traz consigo o estilo de vida hedonista
Todo o prazer para esconder uma vida de tristeza
A idade é mais um número para acrescentar à lista
E pela altura que reparou que estava acordado
Já toda a sua juventude tinha passado
Ser escravo do tempo é pior do que ser animal
A vida não passa por ele, emvelocidade normal
Viver à base de um sonho é a forma mais honrada,
Mas também é a mais chorada
O rapaz que sonhou a pior trajetória,
E o velho que caiu no esquecimento da memória
E quando a Morte clamar pela sua sabedoria
Ao velho que se escondia atrás da juventude
Uma juventude de cabeça vazia
É o homem que morreu sem alcançar a virtude
A idade que o trouxe, com antecedência
E a noite que lhe levou toda a paciência
E o ser humano é, em toda a sua ciência
Um mero pedaço de carne, na sua essência
Procurou a força à sombra da ilusão
E caiu na desgraça, por ter estado fora
Longe por tanto tempo, que perdeu a noção
Uma alma penada que anseia pela sua hora
Morte é apenas uma história sem coração
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PALAVRAS DE UMA ALMA PENADA
Chora-me um futuro onde consiga ver que consegui mudar
Traz-me o coração que deixei apodrecer
Atira as minhas palavras para o mar, e deixa-as afogar
Faz-me criança, outra vez, que eu não quero morrer
Não te curves que eu quero-te abraçar
Não te vires que eu quero-te beijar
Não te magoes que eu quero-te confortar
Não te rebaixes que eu quero-te calcar
E será que daqui a cem anos te vais lembrar?
Da fotografia que não chegamosa tirar
De todas as vezes que eu não consegui desabafar
Das últimas palavras que meouviste dizer
e Do último poemas que vais ler
E será que daqui a dez dias me vais esquecer?
Imagina-me um mundo onde tudo corra às mil maravilhas
Eu não conseguia esperar pela resposta errada, e não me contive
Como é que te podia dar todo o amor que querias?
Quando eu nunca lá estive
Sobrou então a reminiscência do que queria, mas não consegui dizer
Quanto mais falo, menosacredito e menos tenho de fazer
Quanto mais acredito naquilo que digo, mais me consigo contradizer
O corpo não quer, mas a mente só pensa em morrer
E mesmo, sem me conheceres, será que algum dia irás entender?
O suicídio que falhou
O coração que congelou
A mudança que não resultou
As emoções que não demonstrou
O martírio que nos afastou
O namoro que terminou
e o amor que não chegou…
Porque é que construiu tantas muralhas se ainda se sente tão solitário?
Está só, porque o amor existe para ser partilhada
Os muros apenas esconderam uma raiva e uma escuridão de que era proprietário
E agora dividido outra vez, o amor volta a ser separado
Mata-me outra vez, para que eu viva uma vida sem solidão
Deixa-me ter sonhos contigo,num mundo de escuridão
E essa ilusão far-me-á mais forte
Porque sou um monstro, e alimento-me da bondade
Porque sou um egoísta, e não tem dehaver reciprocidade
E essa beleza e pureza foram a minha sorte
Matar por não saber é viver semter perdão
Centos e poucos anos de uma vida que não tem redenção
E nunca vão ser ouvidas as palavras de uma alma penada
E nunca vão ser vistos os desenhos que ainda não foram traçados pela linha
E nunca vão ser vendidas as esculturas que não valem nada
E assim é o artista que sacrificou mais do que tinha
Quem me dera que agora estivesses aqui…
Será que algum dia te voltarei a ver?
Para te contar as coisas que não chegaram a acontecer
Para te contar a história que ainda não acabei de escrever
ou para te dizer o nome do filho que não chegou a nascer
E até no fim te fiz vaguear pelo ódio
Porque é mais fácil de compreender
Do que perceber a falta de amor
É como ver a tinta a perder todo o sabor
Porque me amaste, quando já deviasde saber
Que o que cai cá dentro, cresce vazio
É a última vez que pergunto se ainda és uma confusão
E a última que me responderás que sempre o serás
Como é que me amaste com tanta certidão?
Se eu nem de o dizer era capaz…
Quanto mais terei de esperar para cair no esquecimento?
Antes que vás, deixas-me olhar parati, só por um momento?
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MULHER
O Rei de Espadas que só pensa com uma cabeça
E ela é a Rainha Vazia que faz comque aconteça
Tiraram-lhe a inocência e rapidamente ficou crescida
Tanta promiscuidade que sente a faltade ser preenchida
E no fundo do Castelo, existem várias cavernas
E são todas do Rei, para poder explorar
Uma a uma, a Realeza abre todas as pernas
Sabe para onde vai, mas mesmo assim deixa-se usar
Dizer-lhe que não vale nada?
Seria, mas não é capaz
Pode estar errada
Mas tu também estás
A involuntariedade de quem não está presente
Faz-se sentir quando a carne ainda está quente
E levam-lhe pedaços, lentamente
Enquanto que a sua vida segue em frente
Queria mudar, mas quem cala consente
Deus fê-la assim, só e sã
Para todo o sempre, ou talvez até amanhã
Onde encontrará alguém de verdade
Ou morrerá sem reciprocidade
Não consegue estar sem ninguém a seu lado
A Beleza foi contaminada pelo pecado
Precisa de algum amor, não precisa de estar imaculado
E enquanto isso, preenchem-namais um bocado
O Inferno está a abarrotar
E o Paraíso por preencher
Não consegue voltar a amar
Sem antes se ver a ser mulher
Ninguém está lá para a apanhar quando cair
Alguém que a liberte destas correntes
De todas as promessas que jurou cumprir
De todas as suas decisões ausentes
A pessoas que deixaram de existir
Não sabe como acabou assim
Aprender a nadar
Pelas suas águas sem fim
Mas nunca se chegou a molhar
“O amor que dei, não foi o amor que recebi
Sacrifiquei mais do que o que tinha
E já tinha falecido quando, por fim, percebi
Que nunca tinha sido nenhuma Rainha
É que eu não tenho mais amor para dar a ninguém”