Marta Atougato (aka Cristina Marta) é portuguesa, nasceu e vive em Lisboa. Ex-professora Universitária de Antropologia, atualmente trabalha nas áreas de Sociologia e Inglês no ensino de adultos. Publicou um livro de poesia em 2010 “Os Sonhos da Feiticeira”. A criatividade é a característica que melhor a define. Aprender é onde encontra a sua maior motivação. Por isso, não gosta de se sentir estagnada e anda sempre em constante inquirição.  Como também não lhe agrada a mudança, vive num contra-senso doloroso que a obriga a escrever em alegre compulsão. Anima-se muito perto do mar, do núcleo familiar, dos seus animais que muito estima, a viajar, a ler, a fazer coisas comezinhas, demasiado simples para serem literariamente relevantes, mas que aqui ficam, porque lhe dão alento.
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ESTIGMA

Tenho muita inveja…

Tenho muita inveja
De quem se atira à vida
E a devora;

Inveja de quem degusta o quotidiano
Sem qualquer necessidade de o regurgitar;

Inveja de quem,
Estabelecendo uma meta,
Não a cumpre,
Porque perdeu tempo com gargalhadas sonoras.

Tenho inveja dos passos firmes
E das apoteoses emocionais;

Inveja dos prefácios da vida
Cujos epílogos não constam  porque se eclipsaram;

Inveja da omnipresença calculista
Que exige um viver furioso;

Inveja das etapas futuras
De um porvir desajeitado;

Inveja da magnífica colisão
Entre o Desejo e o Desejar;

Inveja das criancices dos outros
E das fraturas estruturantes;

Inveja da morfologia de um pensamento oco
E da paz aleatória de um sono ébrio;

Inveja de nunca estar sem sentir;
Inveja das turbulências simultâneas;
Inveja dos gritos e dos urros;
Da comiseração,
Do alheamento;
Do que se partiu;
Do despertar…

Mas não tenho inveja dos que só passam…
Somente invejo os que se instalam,
Insistindo em ficar,
A poluir o meu estigma.

 

SEDE

É volátil a Sede.

Não será certamente qualquer sede;
É antes a Sede translucida, não fisiológica,
Que afeta e infecta os atos comuns
De todos os mortais.

É volátil e astuta,
A Sede.

Caprichosa e determinada,
Leva ao assentimento das coisas
Banais, quotidianas, contínuas,
Elevadas a uma grandeza que se quer importante
Sem realmente o ser…

É volátil, astuta e incompreendida,
A Sede.

Em que paira o orgulho
De continuar sempre,
Apesar dos excessivos obstáculos
Que a Sede coloca a si mesma,
Procurando,
Incessantemente,
Encontrar-se a si própria,
Para, em derradeiro ato,
Saciar-se de Si mesma.

 

SONHEI-TE

Esta manhã sonhei-te.
Vivias tempos incertos,
Vitórias fugazes,
Sorrir de modestas conquistas.

Tudo era um vale
De obstáculos semi-ultrapassáveis,
E ao fundo,
Um cubo de arestas limitadas,
Deixava a interrogação do problema.

O lago,
Pequeno e rotundo,
Habitava no ventre de um peixe audaz
Que traçava os planos da empresa
Com uma cana de pesca
De última geração,
Ligada a um GPS avariado.

Quando acordei,
Senti o teu esforço.
Placidamente,
Acordei-te de tanto sonhar-te,
Para que o meu lirismo acabasse
E o teu martírio começasse.

 

O GATO EM MIM

O Gato que me fita
É lânguido e esguio.
O movimento ondulante da cauda parda,
Perde-se no silêncio de um jardim
Que é mais seu que meu.

O olhar verde do Gato que contemplo
Tem tons de primavera acutilante.
Tudo o que nos rodeia
É seu.

Não sei o que pensa de mim.
Não sei sequer se em mim pensa.

Mas a minha alma solitária,
Meu ser sombrio,
Meu corpo errante,
São todos seus!

 

VERBO

Não me deem números, atirem-me com letras!
Os números são ímpios, esconsos, fugazes,
Traduzem só quantidades
Que abandonam qualidades.

Não me deem números, atirem-me com letras!
Os livros são um contínuo de silabas letradas,
Alfabetos inteiros repetidos em palavras
Terra de sementes antes das grandes lavras.

Não me deem números,atirem-me com letras!
Elas são anjos à minha cabeceira,
Em livros impressos de todas as maneiras
Contam historias breves, lúcidas, certeiras.

Não gosto de números porque eu amo as letras!
E não me importa sequer que a minha amiga mais simpática
Seja professora de matemática!

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